SUDDHA DHARMA MANDALAM - A LEI ETERNA

  O śuddha (essência, puro) dharma (sagrado) constitui o objeto, por excelência, da Bhagavad Gītā. Representa a revelação do sentido essencial (śuddha) de sagrado (dharma) feita por Kṛṣṇa a Arjuna.  Embora permeie todos os sistemas sectários da Índia – tanto ortodoxos (Vedanta, Shivaísmo, Samkhya, Yoga, etc.) como heterodoxos (Tantra, Budismo, Jainismo, etc.) – também os transcende, visto que o śuddha dharma não se reduz a nenhuma cultura em particular; mas afirma, principalmente, o caráter universal do sagrado manifestado na experiência fenomenológica de Arjuna na Bhagavad Gītā, no momento que antecede a grande batalha da qual tomará parte.

A temática sobre a essência (śuddha) do sagrado (dharma) surge com os antigos Ṛṣis do período védico. No caso da literatura sânscrita, a discussão sobre o sagrado (dharma) encontra o seu clímax no diálogo da Bhagavad Gītā, no qual Kṛṣṇa trata da eterna (sanātana) e sintética (yoga) ciência (vidyā) do absoluto (brahman). A discussão sobre o sagrado, entretanto, está presente em todas as culturas, orientando o desenvolvimento das estruturas que organizam os mais distintos órgãos do tecido social.  Os textos sagrados procuram responder a questão metafísica sobre o ser por meio de mitologias e teogonias. Ao considerarem o ser em sua ontologia e deontologia, esses textos definem, ainda que precariamente, os conteúdos passíveis de serem apreendidos e desenvolvidos no interior das inúmeras correntes religiosas e escolas de pensamento. 

Ao aceitar a mensagem do śuddha dharma revelada por Kṛṣṇa, Arjuna morre para a sua condição profana, orientada pelo varṇāśrama dharma – o funcionamento fundado nas aparências que regulam a ordem social das distintas culturas. A experiência do sagrado, orientada pelo śuddha dharma – fundada no Espírito que reside no coração – representa um renascimento, o qual não depende apenas de certo conhecimento ou tipo de ação, mas desse comportamento simbólico, que envolve força, coragem e conhecimento para redefinir todo o campo (kṣetra) da atividade humana como um campo de possibilidades para expressar o sagrado (dharma).  Enquanto o ser funciona a partir de sua base material e centrada no egoísmo (funcionamento guṇa-para) a sua atividade se dá na esfera do profano. Entretanto, quando passa a funcionar orientado pela luz do coração (funcionamento ātma-para) entra para a esfera do sagrado. 

Arjuna tem que enfrentar muitos adversários, verdadeiros guardiões, que procuram velar o sentido do sagrado da experiência humana. O seu desafio é transcender a experiência do profano, não pela via escapista daqueles que renunciam ao mundo e se escondem sob as vestes do religioso, mas pela via yóguica, que faz do campo de batalha apenas mais uma oportunidade para a grande síntese dialética do sagrado.  Após ter aprofundado o seu espírito de devoção (bhakti) e recuperado a fé interior, o entusiasmo e o fervor (śraddhā), Arjuna terá que exercitar no campo de batalha do profano (Kuru-kṣetra) o conhecimento adquirido sobre o funcionamento ātma-para (orientado para o Espírito Santo), até que todo o seu ser se encha da energia do sagrado (śraddhā) e o mundo todo então se reapresente como uma expressão desta essência mesma do sagrado, o śuddha dharma.

As religiões ocupam-se da fé nas Escrituras, enquanto a Bhagavad Gītā ocupa-se do sentimento de fé interior, ou fervor do coração (śraddhā), que dá origem a todas as religiões.  O significado de śuddha dharma aproxima-se mais daquele de espiritualidade que de religiosidade sectária, sem, entretanto, privilegiar o espírito à custa do corpo. Pelo contrário, compreende o corpo como uma expressão do sagrado. Estabelece-se, portanto, a igual distância dos materialistas e dos espiritualistas, aos quais, a um só tempo, compreende e transcende. Daí o conselho de Kṛṣṇa para Arjuna atuar no plano material (representado por Kuru-kṣetra), mas com a sabedoria e os valores do plano espiritual (representado como Dharma-kṣetra).  

Daí o limiar e o renascimento de Arjuna pelo Espírito (ātma-para). Em seu caso não se pode falar em arrependimento como causa da sua conversão. Não se trata mais de uma simples regeneração, mas de um verdadeiro processo de santificação e sacralização do ser, que é promovido da escala do humano para o plano do divino. Por nascer de dentro, este processo representa a transcendência ao estágio de pertencimento a esta ou aquela religião em particular.

Em suma, este tipo de experiência de sublimação e transcendência, no sânscrito da Bhagavad Gītā, se diz śraddhā. Śraddhā transcende a fé (latim: “fides”; grego “pistis” – crença), pois não é cega, nem se opõe ao bom-senso e à razão. Encher-se de śraddhā, tal como se deu com Arjuna, implica em uma espécie de conversão, ou mudança de estado de mente, não de uma direção para outra qualquer, mas do funcionamento guṇa-para para ātma-para, ou seja, da direção orientada para a experiência mundana para aquela revelada pela experiência do sagrado.  Daí se dizer que constitua uma experiência de natureza universal, que transcende os limites culturais definidos nas distintas religiões, pois se dá pela comunhão com o Espírito Santo no sagrado do nosso coração.

Assim se explica que o Śuddha Dharma Maṇḍalam, Organização Esotérica tornada pública na Índia em 1915 por Sir Subbier Subramania Iyer (1842 - 1924), constitua-se destes mesmos princípios, tendo se estabelecido no Brasil com o único propósito de contribuir, por meio da Yoga Brahma Vidyā, para a elevação espiritual e material de toda a humanidade, bem como para o aprimoramento das suas distintas instituições religiosas, educacionais, políticas, sociais e culturais.

 

 

 

 

2. O Śuddha Dharma Maṇḍalam como uma expressão da unidade essencial dos distintos saberes, ciências e religiões. 

A essência do sagrado (śuddha dharma) não é algo que possa ser “conhecido” pelo estudo teórico de qualquer Escritura.  Não basta estar familiarizado com textos e aspectos teóricos relativos ao sagrado. É necessário viver.  Assim como as demais Escrituras, a Bhagavad Gītā também não representa nada mais que um pequeno esboço, com alguns símbolos e direções para o sagrado de que se compõe o real. E mesmo que trate da importância fundamental da práxis, esta referência não substitui, em absoluto, a experiência em si mesma, a qual o sujeito terá, necessariamente, que se submeter, uma e muitas vezes, antes de alcançar o domínio desta ciência relativa ao sagrado. É o percurso que nos possibilita experimentar, ou “sentir”, na prática, o significado de cada passo da jornada.  Percurso, este que, em sânscrito, diz-se brahmacarya – literalmente, “caminho em direção [carya] à realização do sagrado [brahman]”.  Ninguém se torna, verdadeiramente, um brahmacārin, simplesmente por ler, ou ouvir, qualquer coisa que seja. E este é o ponto que iremos aprofundar: há uma enorme diferença entre o processo de “conhecimento” de algo e o processo de “realização” deste mesmo algo.

 É dentro desse contexto de reconhecimento do caminho de comunhão com o sagrado que a expressão “śuddha dharma” ressurge no final do século XIX.  De acordo com a versão resumida do antiquíssimo Praṇava Vāda, de Ṛṣi Gargyayana, somente traduzida para o inglês em 1910, por Bhagwan Das (1869 - 1958), membro da Sociedade Teosófica e grande colaborador de Annie Besant (1847 - 1933), o extraordinário e misterioso Paṇḍit Ḍhanarāja (1873-?) teria transmitido oralmente alguns dos textos publicados pelo Śuddha Dharma Maṇḍalam, como o próprio Praṇava Vāda, em 1915 (Vol. 1) e 1919 (Vol. 2). Sir Subbier Subramania Iyer (1842 - 1924) elogia o inestimável trabalho de tradução de Bhagwan Das (1915, Prefácio ao Vol.1), o qual facilita o estudo e a compreensão de todos os saberes da Bhagavad Gītā e inclui como Apêndice a minúscula Īśa (“pelo Senhor”) ou Īśāvāsya (“revelado pelo Senhor”) Upaniṣad, que trata desta mesma abordagem (1919, Prefácio ao Vol. 2). Os manuscritos de Bhagwan Das, pelo que se sabe, encontram-se microfilmados na biblioteca da Sociedade Teosófica de Adyar, Chennai.  O Paṇḍit  Ḍhanarāja teria ditado o Praṇava Vāda, de memória, para Bhagwan Das.

Alguns anos mais tarde, em 1915, na própria Sociedade Teosófica, a qual Bhagwan Das era filiado, seria estabelecida a organização de nome Śuddha Dharma Maṇḍalam, dedicada à divulgação dos textos oriundos desta tradição esotérica.  Logo se publica a Bhagavad Gītā (1917), organizada, tematicamente, de acordo com a Bhāsya (Comentário) de Haṁsa Yogi – texto que, se especula, seria anterior, pelo menos em dois séculos à Bhāsya de Śāṁkara, tido como o mais antigo comentário que teria sobrevivido até os nossos dias. 

No Brasil, o Śuddha Dharma Maṇḍalam estabelece-se, aos poucos, principalmente a partir da visita, em 1965, do instrutor indiano Śrī Janardana.  Viajando em companhia de Śrī Vajera Yogi Dasa (Dom Benjamin Guzman Valenzuela)  da seção chilena do Maṇḍalam, Śrī Janardana é recebido por diversos representantes da instituição em nosso país, como Sérgio Barretto, de Ribeirão Preto. 

 Śrī Vajera Yogi Dasa (Dom Benjamin Guzman Valenzuela)

Alguns anos após o giro de Śrī Jnardana pela América Latina, o núcleo chileno publica, em 1970, a sua primeira edição da Bhagavad Gītā do Śuddha Dharma Maṇḍalam, com 745 versos, organizados segundo a Bhāsya de Haṁsa Yogi. Logo a seguir, em 1971, publica “Uma Organizacíon Esotérica em la India – coletânea de textos sobre o Śuddha Dharma Maṇḍalam publicados originalmente na revista oficial da Sociedade Teosófica, “The Theosophy”, em 1915.  Em 1978 é publicada a segunda edição da Bhagavad Gītā. Estes e outros textos difundem-se rapidamente pelo Brasil e começam a receber traduções para o Português, em geral, a partir das versões em espanhol. Isto não impediu, entretanto, que o Brasil viesse a se constituir como o principal polo irradiador dos textos do Śuddha Dharma Maṇḍalam e da sua cultura universalista. 

 

 

No ano de 1981, em Congresso Brasileiro do Śuddha Dharma Maṇḍalam, realizado em Belo Horizonte, contando com a presença de Śrī Anantram, discípulo de Śrī Janardana e o último instrutor externo a representar a instituição como um todo, foram Iniciados por Sri Vayera Yogue Dasa, 5 (cinco) Gnana-Dhathas para atuarem como instrutores, com autoridade Iniciática para consagrar novos membros, conceder Consagração a novos Emissários do Śuddha Dharma Maṇḍalam, instalar, consagrar, conduzir novos Ashrams e Suddha Sabhas. Em 1982, em  Congresso realizado em Uberlândia, foram outorgadas aos cinco Gnana-Dhathas brasileiros, como símbolo de seu ofício, as Yoga Dandas (varas de poder para serem usadas na transmissão de energia sutil iniciática nos cerimoniais de Consagrações, Iniciações e Sacramentos).

 

 

 

3. Brahmacharya como uma expressão do caminho para o sagrado.

O termo brahmacharya está sendo empregado aqui com o sentido específico de caminho para o sagrado e não com aquele sentido mais comum com que se designa, por licença poética, aos adolescentes em fase de formação dentro da estrutura do sistema de castas da Índia.  Em sentido filosófico e místico, brahmacarya envolve o compromisso de toda uma vida para percorrer e mapear os caminhos relacionados ao sagrado e às suas leis; envolve a coragem e disposição para sair do plano teórico e elaborar, na práxis, as estratégias para enfrentar os perigos de cada curva do caminho.  Segundo ensina a Bhagavad Gītā, cf. vimos anteriormente, tais perigos surgem em função de nossa sujeição a um funcionamento de base materialista e egoísta, definido tecnicamente como guṇa-para (orientado pelas “aparências”). E é a superação desta condição de sujeição, definida como funcionamento ātma-para (orientado pelo sagrado), que indica o ingresso na via do brahmacārin a qual possibilita, aos poucos, que se aprenda a recolher os sentidos para dentro do coração.  

O brahmacārin não é aquele que se considera imune ao fogo das paixões; pelo contrário é aquele que lhes reconhece o terrível poder de queimar e que, por isto mesmo, aprende a ser prudente.  Seríamos tolos se quiséssemos lutar com o fogo para que este deixasse de queimar. Do mesmo modo, o sábio não luta com as paixões. Apenas domina a arte de lhes manter sob o seu controle.  Por isto, não permite que a sua mente se alimente e oriente a partir dos sentidos do corpo.  Protege-se do poder de subjugar e do egoísmo natural do corpo, cultivando nele a consciência; e nas interações sociais, o seu melhor funcionamento.  

O brahmacārin não luta contra a natureza material do corpo, pois compreende que é da natureza do corpo a materialidade, a qual procura apenas equilibrar com a natureza espiritual.  Ao levar à práxis o conhecimento adquirido sobre o ser, o brahmacārin percebe que o ser não é apenas um corpo material de natureza dual (masculino e feminino), mas também uma consciência espiritual e una. 

A matéria é, por natureza, dual, contraditória, e não há o que fazer quanto a isto, a não ser compreender que a sua superação se dá pela aceitação e consequente harmonização dos contrários. Ao cultivar o controle sobre as paixões, o brahmacārin deixa, naturalmente, de prestar atenção aos objetos das paixões.  Não porque elas tenham deixado de ter o seu poder, mas porque ele já não tem nelas o seu foco, de modo que elas lhe ficam invisíveis.  Do mesmo modo, a pessoa que cultiva a honestidade deixa de perceber os apelos e as oportunidades para ser desonesta, embora tais apelos existam e mantenham o seu poder de subjugar aqueles que lhes deem ouvidos.

Percebemos do universo exterior, basicamente, aquilo que cultivamos na mente. O brahmacārin, portanto, é aquele cujo curso de ações não se orienta pelos apelos exclusivos de sua natureza material, ou individual.  O seu foco não é o indivíduo, mas o ser que se apresenta, no corpo, como sagrado. É a partir daí que ele redefine a sua relação com o mundo e consigo mesmo. Estabelece as suas inter-relações a partir, não dos estímulos sensoriais provocados pela matéria, mas do sentimento de sagrado que cultiva em si mesmo. Não se orienta pelo corpo, senão que promove o casamento do corpo com a consciência, de tal modo que o seu celibato transforma-se em castidade de palavras, pensamentos e atos, porque estes passam a refletir o sentimento de sagrado, que fecunda e anima todo o universo material.  

Assim, em síntese, deve ser compreendida e praticada a ciência do sagrado de que trata a Bhagavad Gītā, quando interpretada em conformidade com o que ensinam os textos fundamentais da Organização Esotérica Śuddha Dharma Maṇḍalam.

 

 

 

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